e soberania nacional
Recuperar o controlo público<br>para garantir o desenvolvimento<br>e a independência
A alienação pelos governos dos sectores estratégicos integra-se na ofensiva mais geral do capital transnacional contra a soberania dos estados, visando a apropriação dos seus recursos, a exploração e o empobrecimento dos povos. Travar e inverter este processo é pois uma condição indispensável para garantir o progresso económico e social, como assinalou Vasco Cardoso, membro da Comissão Política do PCP, no encerramento do debate «Sectores estratégicos, mercado comum e soberania nacional – um olhar desde o sector dos transportes».
Impõe-se a reversão de empresas privatizadas e a travagem e inversão dos processos de subconcessão e subcontratação
A iniciativa, promovida dia 27 de Novembro, em Lisboa, pelos deputados do PCP no PE, em coordenação com o Grupo Confederal da Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Verde Nórdica (GUE/NGL), deu particular enfoque ao sector de transportes.
Como salientou logo na abertura o deputado Miguel Viegas, os transportes representam cerca de 4,5 por cento do Produto Interno Bruto da União Europeia, sendo responsáveis por dez milhões de postos de trabalho, que representam a mesma percentagem do emprego total no espaço da UE.
A dimensão e importância deste «mercado» tornam-o particularmente apetecível ao grande capital. Por isso, nos últimos 30 anos, têm brotado das instâncias comunitárias sucessivos pacotes liberalizadores, com o objectivo de estabelecer o domínio absoluto das multinacionais à escala europeia.
Mas os transportes estão longe de ser um caso isolado. Charis Polycarpou, membro do CC do AKEL (Chipre), referiu que as condições impostas pela troika aos países intervencionados incluem sempre a privatização de serviços e empresas públicas.
Esta imposição, salientou Polycarpou, não tem qualquer fundamento legal ou económico. Não só os tratados ressalvam formalmente a soberania dos estados nesta matéria, como na maior parte dos casos as empresas públicas privatizadas desempenham um papel fundamental na economia, são rentáveis e dão uma importante contribuição para o orçamento dos estados.
No caso do Chipre, só três empresas semi-estatais, de electricidade (EAC), telecomunicações (CYTA) e dos portos, hoje em risco de privatização, geraram receitas para o Estado superiores a mil milhões de euros, nos últimos oito anos.
Um dos argumentos mais repisados do discurso oficial para justificar as privatizações é a alegada «eficácia» da gestão privada. Todavia, a prova de que tal não passa de uma falácia, mil vezes repetida, ficou à vista de todos com a eclosão da crise financeira de 2007-2008.
Odran Corcoran, representante do Sinn Féin, recordou que os irlandeses foram obrigados a pagar 42 por cento do custo total da falência dos bancos, apesar de a colossal dívida de 62 mil milhões de euros da banca irlandesa ser detida por apenas 191 indivíduos.
Marc Botenga, do Partido do Trabalho da Bélgica, centrou-se nos transportes de passageiros, em particular nos caminhos-de-ferro, ameaçados no seu país pela privatização. O seu carácter estratégico decorre antes de mais do facto de deles dependerem o direito à mobilidade e a um ambiente saudável. Mas em caso de privatização, também há uma diferença significativa na qualidade do serviço e no preço, como ilustra a experiência do Reino Unido. Aqui, para além de terem ocorrido 1800 acidentes, entre 1996 e 2000, os preços dispararam.
A corrida às privatizações
Numa breve retrospectiva, o deputado João Ferreira lembrou que o processo de privatizações em larga escala na Europa teve início no Reino Unido, no final dos anos 70, no consulado Thatcher, chegando na década seguinte à Europa continental.
Assim, «entre 1977 e 2004, foram levadas a cabo mais de quatro mil privatizações no mundo inteiro». A Europa ocidental foi a mais activa, promovendo «29 por cento das privatizações», as quais geraram «quase metade (48%) das receitas de todas as privatizações efectuadas neste período, no mundo inteiro».
Os estados da Europa ocidental conseguiram a «proeza» de privatizar mais empresas do que os da Europa de Leste e da ex-União Soviética, bloco responsável por 28 por cento das privatizações feitas no mundo.
No entanto, referiu ainda João Ferreira, «até à primeira metade da década de 90 (com a excepção do Reino Unido), os sectores estratégicos – nomeadamente os transportes, as telecomunicações, a energia, as chamadas «utilities» – mantinham-se sob controlo público».
A grande aceleração verifica-se a partir do Tratado de Maastricht, com os seus «nada inócuos» «critérios de convergência para a moeda única», o «aprofundamento do mercado único», «com o avanço do mercado sobre áreas até aí resguardadas», e no contexto dos acordos liberalizadores da Organização Mundial do Comércio.
Ao mesmo tempo, esta verdadeira corrida às privatizações é reveladora da existência de amplos sectores estatizados na maioria dos países. Estes sectores, salientou o deputado, desenvolveram-se no fundamental em três períodos: após a Grande Depressão, anos 20 e 30, em que se verificaram «nacionalizações em massa, determinadas pela necessidade do Estado de recuperar e desenvolver a economia»; no período do pós-guerra, determinadas pelas «exigências da reconstrução», mas também pela «afirmação do socialismo como sistema com dimensão continental e posteriormente mundial e das suas conquistas»; uma nova vaga de nacionalizações ocorreu «na sequência do choque petrolífero e da crise dos anos 70».
«A conclusão que daqui se pode retirar», disse João Ferreira, é que a exigência de «desenvolvimento económico, de incremento da produção, de resposta a problemas sociais candentes, ou mesmo a grandes problemas nacionais, sempre esta exigência teve como resposta o desenvolvimento de um amplo e forte sector público empresarial, com ênfase particular nos sectores estratégicos da economia».
Torrente devastadora
Ao longo do debate foram feitas várias intervenções sectoriais que descreveram um quadro de destruição nos vários ramos dos transportes.
No sector portuário, Margarida Aboim, do executivo do organismo de direcção do sector dos transportes da ORL, destacou dois eixos do processo de liberalização: o primeiro foi a liquidação da Marinha Mercante, o segundo a entrega da actividade portuária a grupos privados.
Em consequência, Portugal reduziu praticamente a zero a sua Marinha Mercante, ao mesmo tempo que privatizava ou liquidava parte importante dos estaleiros navais. Por seu turno, o essencial da actividade portuária está hoje nas mãos de multinacionais. O que resta na esfera da Administração Pública, por exemplo, a pilotagem das barras, também está sob ameaça de privatização.
Não menos desoladora é a situação no sector ferroviário, onde, segundo Catarina Cardoso, do executivo do organismo dos transportes da ORL e da Comissão de Trabalhadores da CP, o parque de material circulante se encontra no «pior estado de conservação dos últimos 40 anos», fruto da falta de investimento e das ineficiências geradas pela separação das oficinas e da infra-estrutura em empresas independentes da CP, no intuito da futura privatização.
No sector do táxi, como assinalou Carlos Carvalho, do executivo do organismo dos transportes da ORL, a situação é marcada pela «liberalização, concorrência desleal e ilegal e pela pirataria». Os profissionais deste sector vivem «momentos de angústia e incerteza», devido à falta de regulamentação, às práticas de sobre-exploração de trabalhadores e à permissividade face à actividade ilegal de empresas, como é o caso da multinacional norte-americana UBER.
Arrepiar caminho
Analisando os resultados da introdução da dita «concorrência» nos transportes rodoviários, Rego Mendes, do executivo do organismo dos transportes da ORL, concluiu que a experiência em Portugal resultou em «transportes mais caros, menos oferta, concentração das empresas privadas e domínio do mercado pelas multinacionais estrangeiras.
Actualmente, frisou, o transporte rodoviário de passageiros é dominado por três grandes grupos; Barraqueiro, Transdev e Arriva. A Barraqueiro é detida em 31,5 por cento pela Arriva, e esta é controlada pela Deutsche Bahn.
E esse seria o destino da Carris e do Metropolitano de Lisboa, bem como da STCP e Metro do Porto, caso o governo PSD/CDS-PP continuasse em funções, como realçou Bruno Dias, membro do CC do PCP e deputado na AR.
Porém, sublinhou, o «novo Governo tem plenas possibilidades, e todos os meios e condições, para tomar medidas executivas imediatas para cancelar esses processos, cumprindo a vontade maioritária do povo e da Assembleia da República e o compromisso assumido – e hoje mesmo reafirmado, como pudemos ouvir».
O assalto à TAP
Sobre o transporte aéreo intervieram Fernando Henriques, do executivo do organismo dos transportes da ORL e dirigente do SITAVA, que falou sobre a liberalização da assistência em escala (handling), onde grassa a precariedade, Francisco Corvelo, do executivo do organismo dos transportes da ORL e dirigente do SITAVA, que abordou o controlo do espaço aberto e o projecto de criação do «céu único europeu»; e finalmente Manuel Gouveia, do CC e da DORL do PCP, que recordou as sucessivas tentativas falhadas de privatização da TAP.
Desde os anos 90, lembrou Manuel Gouveia, os sucessivos governos definiram o objectivo de proceder à privatização da transportadora área portuguesa: «Em 1997/98, decorreu a primeira tentativa formal de vender a TAP. O governo afirmava então que a TAP ou era privatizada ou desaparecia, e o processo de venda desta à Swissair estava a um passo de ser fechado quando a Swissair faliu. E foi a não privatização que salvou a TAP e lhe permitiu crescer e ganhar importância nos 15 anos seguintes».
Mais tarde, em 2011, «é lançado o segundo processo de privatização da TAP, com base nos mesmos falsos argumentos usados no primeiro processo: a inevitabilidade da venda para salvar a companhia. Mais uma vez a TAP resistiria, a privatização seria derrotada e não aconteceu à TAP nenhuma das iminentes desgraças anunciadas».
Na terceira e mais recente tentativa, salientou ainda Manuel Gouveia, «mentiu-se sobre os prejuízos da companhia e escondeu-se os seus activos e o seu contributo real para a economia». Mesmo assim, o anterior governo não conseguiu concretizar os seus intentos. E foi só a 12 de Novembro, quando já estava demitido, que avançou com a venda da TAP. Tratou-se de um acto ilegal:
«O governo estava em gestão e não podia vender a empresa. O governo não podia assumir prestar avais de mais de 700 milhões de euros sem prévia aprovação da Assembleia da República e do Tribunal de Contas. O governo não podia alterar as condições essenciais do Caderno de Encargos no próprio dia da assinatura do contrato».
Por isso, concluiu Manuel Gouveia, «dizemos que a TAP não está privatizada, foi tomada de assalto por um grupo de capitalistas financiados pelo próprio Estado português, que precisam de ser afastados urgentemente antes que realizem estragos demasiado graves: e importa lembrar que até já meteram os terrenos do reduto TAP à venda!».
Romper com a submissão
Intervindo no encerramento do debate, Vasco Cardoso, membro da Comissão Política do PCP, recordou as consequências nefastas da reversão das nacionalizações realizadas após o 25 de Abril de 1974 e reafirmou as posições e a acção política do PCP em defesa da recuperação do controlo público dos sectores estratégicos:
«(…) Defendemos a afirmação da propriedade social e do papel do Estado na economia com a reversão das privatizações e a recuperação para o sector público dos sectores básicos estratégicos, constituindo um Sector Empresarial do Estado forte e dinâmico, onde se inclui a necessidade do controlo público dos sectores estratégicos da nossa economia. Tal consideração é inseparável da concepção que temos de que só assim, será possível aproveitar e desenvolver todas as potencialidades produtivas do nosso País, criar emprego e emprego com direitos, estimular a actividade económica, reduzir o défice energético, cuidar do ambiente e da coesão territorial, corrigir atrasos e responder às necessidades e aspirações de desenvolvimento do nosso povo, num quadro de uma economia mista não dominada pelos monopólios à qual a Constituição da República dá cobertura.
«O que impõe a reversão de empresas privatizadas e a travagem e inversão dos processos de subconcessão e subcontratação, reunificando o que foi desmembrado. Nomeadamente: a CP unificada modernizada e pública assegurando a exploração, as infra-estruturas e o material circulante, e a ligação a todas as capitais de distrito; a TAP como empresa de bandeira e pública, o controlo do espaço aéreo pela NAV e a reversão da ANA para o sector público; a modernização das infra-estruturas, equipamentos e exploração dos aeroportos e dos portos; a dinamização portuária no Estuário do Tejo, como é o caso do Barreiro; recuperar a natureza pública da rede rodoviária, reverter a fusão das Estradas de Portugal e da REFER na Infraestrutura de Portugal (IP) e travar a sua privatização, extinguir as PPP e desenvolver a rede viária regional.
«A concretização deste objectivo pressupõe a ruptura com uma política de submissão aos interesses dos grupos económicos e de afirmação da soberania nacional. Combatendo na União Europeia todas as medidas e decisões que afectam os interesses nacionais e não deixando de reivindicar e exigir a concretização de todas as medidas e apoios que possam ser positivas para o nosso País, temos bem presente, que será inevitável o questionamento, o confronto e a ruptura com os objectivos que emanam de Bruxelas ou de Berlim.(…)».